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Será uma paçoca a Etnomusicologia?

  • Foto do escritor: Renato Brito
    Renato Brito
  • 12 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura

Na página inicial do meu site, eu me apresento assim: "professor da área de Canto Coral e Regência da Universidade Federal do Cariri, doutor em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Bahia". Cada um desses termos que pontuam minha identidade profissional poderiam ser definidos, discutidos e ampliados. O que geralmente levanta mais perguntas é o termo Etnomusicologia.

Mas o que é Etnomusicologia?


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A primeira vez que ouvi a expressão e que fiz essa pergunta foi numa conversa com o professor, doutor, colega de trabalho e amigo Francisco Weber dos Anjos. Eu ainda era estudante da Licenciatura em Música na Universidade Federal do Ceará, campus Cariri. Lembro bem desse momento. Ele foi registrado em imagem e depois Weber me emprestou um livro em espanhol. O evento uma Feira das Profissões, o pátio do campus estava repleto de pessoas das escolas de Ensino Médio da região e minha turma estava em um intervalo entre uma aula e outra. Acho que alguém deve ter publicado nas redes sociais, eu baixei a imagem e guardei nos meus arquivos.

Como a Etnomusicologia me parece uma daquelas áreas áreas do conhecimento bastante abrangentes, que engloba Música, Antropologia, Sociologia, etc., cujas primeiras pessoais que começaram a praticá-la estavam ligadas a Filologia e até a Botânica, pensei na Etnomusicologia como uma paçoca. De acordo com o Oxford Languages, paçoca é uma “espécie de farinha resultante de vários ingredientes socados no pilão”.

A imagem de uma paçoca me veio a mente ao apresentar na aula da disciplina Trajetórias em Etnomusicologia um pouco do que teria sido a produção acadêmica da área que, depois da Segunda Guerra Mundial, começa a adotar o termo, de acordo com o verbete da Enciclopédia Grove. Em grande medida, naquele período o campo está se afastando ou se tornando independente da Musicologia, evitando o termo Musicologia Comparada, proposta na obra de Guido Adler no final do século XIX. O verbete da Grove procura tratar da Etnomusicologia em três grandes fases: Pré-1945, Pós-1945 e Questões teóricas contemporâneas. Antes de tudo, o verbete da Grove destaca que o interesse por músicas de outras culturas não é algo que começa apenas no fim do século XIX e do século XX. É possível encontrar esse interesse na música “do outro” ou “das nações” nos viajantes do período colonial, tais como do suíço Jean de Léry em Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil (1578) e do francês Joseph Amiot, em sua Mémoire sur la musique des Chinois tant anciens que moderns (1779). Entretanto, é no final do século XIX que, com a invenção do fonógrafo de Thomas Edison (1877), foi possível gravar em campo as músicas de culturas afastadas dos centros urbanos da Europa Ocidental, como Paris, Londres e Berlim. Também há um interesse científico no som e na relação que o mesmo tem com a psiquê humana. Destaca-se a contribuição do foneticista inglês Alexander J. Ellis (1814-1890), que propôs uma divisão das relações entre sons musicais em um sistema centesimal. Naquele momento, ficou mais claro que as escalas utilizadas no sistema tonal das nações imperialistas ocidentais não eram naturais nem mesmo mais desenvolvidas do que o material sonoro das demais culturas musicais. As pesquisadoras e os pesquisadores que figuram nessa mistura da Etnomusicologia na fase Pré-1945 faziam parte de diversas áreas da Ciência. Eram linguistas, historiadores/as, músicos/as, biólogos/as, médicos/as, etc. O trabalho deles e delas era realizado no contexto da colonização e eles/elas podiam agir como representantes das companhias ou das nações imperialistas. Também havia um esforço significativo de construção da identidade nacional. Como no Brasil, da década de 1930, pesquisadores/as, como Mário de Andrade, empreendiam ou promoviam incursões pelo interior dos territórios nacionais, a fim de coletar o material musical que faria parte das matrizes culturais desse Estado-nação. Essa música poderia ser de povos originários e/ou "do povo", o que se convencionou chamar música folclórica. Posteriormente o/a pesquisador/a faz a catalogação desse repertório, a transcrição do mesmo, o que poderia compor um acervo museológico e até ser incorporado no sistema educacional. Na fase Pós-1945, os/as pesquisadores/as já passam a utilizar a etnografia para pesquisar a música diferente da música em que foram educados/as em seus países de origem. Nessa fase, o termo Etnomusicologia começa a ser utilizado, para diferenciar o campo da Musicologia. Associações como a Society for Ethnomusicology (SEM) e o International Council for Traditional Music (ICTM) são criadas. Partindo de um paradigma de imersão no campo, portando as inovações tecnológicas, tais como os aparelhos portáteis de fita cassete, máquinas fotográficas, etc., o/a pesquisadora/a acompanham culturas musicais no decorrer do tempo. Alguns/Algumas deles/as se tornaram muito atuantes na luta por direitos dessas populações, por vezes ou quase sempre, ameaçadas pela violência do Estado e de interesses do capital. Para a Etnomusicologia contemporânea, o verbete destaca uma série de ingredientes que com que a área precisa lidar, a partir de uma quantidade enorme de perspectivas. O verbete alista as questões cultura, comunidade, etnicidade, nacionalismo, diáspora, globalização, raça, sexualidade, gênero, História e prática. Essa tentativa me dá a impressão de que a Etnomusicologia é uma grande mistura. São vários ingredientes como amendoim, castanha do Pará, de caju, açúcar mascavo, etc., tudo junto, misturado e muito bem pilado. Parece-me que a Etnomusicologia é uma “boa desculpa”, uma grande área de conhecimento guarda-chuva, pela qual se pretende estudar a música, nos termos daquelas e daqueles que detêm o conhecimento musical específico. Esse estudo pode ser feito por alguém da cultura musical que entrou em contato com a tradição acadêmica da Etnomusicologia. Também pode ser feito por alguém de fora daquela cultura musical. Pode ser feito de modo a produzir um conhecimento que faça reverberar a diversidade humana em todas as suas refrações de cor e luz, com compromisso político, com ativismo e princípios éticos. Também a Etnomusicologia pode ser problematizada. Penso especialmente em como a Etnomusicologia constrói esse “etno”. Quem seria esse “etno”? “Etno” em relação a quem? Seria a Etnomusicologia mesmo como uma paçoca?


REFERÊNCIA: PEGG, Carole; MYERS, Helen; BOHLMAN, Philip V.; STOKES, Martin. Ethnomusicology. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford, 2004.

 
 
 

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